E há estas histórias, que fazem parte da nossa história e do nosso mito, ao mesmo tempo uma pergunta e uma resposta.
“Há uma história muito bonita sobre Kishizawa Roshi, um mestre Zen muito famoso. Era um professor do secundário antes de se tornar um monge, com a idade de trinta anos, sob a orientação de Nishiari Roshi. O rosto de Nishiari Roshi era único; era muito sério e tinha muitas marcas, como a pele de uma batata. Kishizawa Roshi estava sempre a ser repreendido por ele, fizesse o que fizesse. Bom ou mau, certo ou errado, estava sempre a ser repreendido. De tal forma que Kishizawa Roshi pensou em abandonar tudo; ele queria mesmo ir embora, porque não entendia por que tinha de sofrer tanto. Muitas vezes pensava em ir embora, mas não conseguia. A vida do dia-a-dia era como se uma pessoa tivesse de dar saltos pouco dignos para alcançar alguém muito ocupado; como um rapazinho que não quer ficar para trás e avança aos saltos. Tinha de estar a fazer isso continuamente. O dia-a-dia ali estava e ele tinha de se apressar para não ficar para trás.
Um dia o Mestre deu um ensinamento sobre a transmissão do Dharma e explicou alguns dos diagramas da transmissão. Um deles chamava-se dai ji ou “a questão crucial” e representava o background filosófico do Budismo Zen. O diagrama completo era muito bonito, começando no Buda Shakyamuni e passando por Dogen Zenji e chegando até ao tempo presente. Havia outro diagrama que continha a frase: “Aqui está o homem de ferro”. Homem de ferro quer dizer uma pessoa que tem uma fé perfeita, um espírito que não olha para trás. Um homem de ferro é como uma montanha enorme. Esta primeira frase também significa que não há uma segunda frase. Esta primeira frase é a pureza integral, estar a um passo à borda de um precipício. Não é de esperar um segundo passo. Aquilo que temos de fazer é só dar aquele primeiro passo. Não há um passo a seguir ou um passo anterior. Se nos tornamos o homem de ferro, dizemos: “aqui estou”. É um grande homem, que nunca se mexe. Não é uma outra pessoa, nada mais, apenas “aqui está”.
Quando Kishizawa Roshi ouviu isto, as lágrimas correram-lhe pela face abaixo sem parar e depois queria pedir uma caligrafia do ‘homem de ferro’. Contudo, receava pedi-la ao Mestre, pois fosse o que fosse que tentasse fazer, era sempre repreendido, nunca era aceite. Mas queria tanto a caligrafia que um dia decidiu pedir a um velho senhor, estimado pelo Mestre, para pedir a caligrafia em vez dele. Quando o velho senhor ia visitar o Mestre, este ficava muito satisfeito; mesmo que estivesse de mau humor, imediatamente sorria e falava com o amigo. Ao princípio o velhote estava um pouco hesitante, mas finalmente concordou. Assim, um dia, lá foi visitar o Mestre com uma garrafa de saké como presente. O mestre gostava muito de saké e massas. Portanto o velho foi vê-lo e disse-lhe: “Cá estou, vamos comer umas massas e beber saké.” O mestre ficou muito contente e convidou-o a entrar. Começaram a beber saké e a comer as massas, e então, quando o mestre se sentia mesmo satisfeito, o velho senhor resolveu falar da caligrafia. Disse: “Roshi, gostaria que me fizesses uma caligrafia”. O mestre disse: “Sim, claro, será um prazer fazer-te uma caligrafia. O que queres que escreva?” O velho respondeu que queria o ‘homem de ferro’. Imediatamente, a face do mestre ficou carrancuda e disse: “Não é para ti; alguém to pediu, não foi?” “Sim”, disse o amigo. “Foi o meu aluno, Ian Kishizawa, não foi?” O amigo admitiu que sim. Depois de proferir o nome do discípulo, o mestre fez uma pausa, a voz tornou-se mais baixa, lágrimas correram-lhe pelo queixo abaixo e disse: “O meu discípulo, Ian, amadureceu. Queria que eu lhe escrevesse ‘homem de ferro’; é maravilhoso.” Ao falar do homem de ferro, tinha penetrado profundamente no coração de Kishikawa de tal forma que as lágrimas lhe correram pela cara. O mestre percebeu e ficou à espera que ele viesse e expressasse a sua compreensão. A caligrafia que ele pediu através do velho senhor era na verdade a certificação da sua iluminação, e finalmente Kishikawa recebeu a transmissão do seu mestre. “
Dainin Katagiri Roshi (1928-1990), Returning to Silence