Jetsunma Tenzin Palmo, de nascimento Diane Perry, veio ao mundo durante o Blitz, em 1943, filha de uma mulher de limpezas e de um vendedor de peixe de East End. Em 1961 decidiu que era budista e, com dezoito anos, viajou por mar até à Índia à procura de um mestre. Ao fazer vinte e um encontrou o seu guru de raiz, o oitavo Khamtrul Rinpoche. Três semanas depois tornou-se a segunda mulher ocidental a ser ordenada monja no budismo tibetano. Aos trinta e três, Tenzin Palmo retirou-se para uma gruta no vale Lahaul, nos Himalaias, e aí viveu durante doze anos. Desde então, tem dado ensinamentos em todo o mundo, num esforço de consciencialização e de angariação de fundos para o Mosteiro feminino de Dongyu Gatsal Ling, em Himachel Pradesh, India, que fundou em 2000.
Lucy Powell entrevistou esta monja de sessenta e seis anos na sua passagem por Londres, na sua última viagem de ensinamentos, antes de se retirar para a Índia.
O seu exemplo é ao mesmo tempo inspirador — uma ocidental, e
uma mulher, a fazer um retiro solitário durante tantos anos — e
desanimador: a não ser que nos possamos sentar numa gruta nos Himalaias,
não faremos um progresso real no caminho.
É certo que temos de praticar. Isso é verdade. É até impressionante o
número de desculpas que podemos inventar para não nos sentarmos. Esta
ideia que temos que quando as coisas forem perfeitas, aí começaremos a
praticar — as coisas nunca serão perfeitas. Isto é o samsara!
Lembro-me de uma vez em que estava na gruta toda deprimida porque a neve
ia derreter na primavera e a água ia infiltrar-se pela parede de trás,
tornando tudo molhado. Até que finalmente pensei: “Mas, não foi o que o
Buda disse? que era assim? o que é a primeira nobre verdade, afinal? De
que é que estamos à espera? Por que tanto estrilho quando sofremos?”
Depois disso, não tive mais complicações. Chama a uma coisa um
obstáculo, é um obstáculo, chama-lhe oportunidade, é uma oportunidade.
Nada é estranho à vida espiritual. Compreender isto é muito importante.
Então, porquê o retiro?
Um retiro, é, de uma certa forma, uma reparação rápida. Lembro-me
muitas vezes das freiras da ordem da Madre Teresa: não estão a pegar nos
mortos e a morrer o dia inteiro —metade do dia é passado a rezar. Se
damos sem parar, sem respirar, ficamos stressados e queimamo-nos.
Doze anos é uma reparação muito longa.
Cada um de nós tem algo a fazer nesta vida; temos de descobrir o que é e
fazê-lo. Nasci para o retiro. Era extremamente feliz na gruta e estava
muito grata por ali estar. Era uma oportunidade rara.
Teve períodos de dúvida ou medo?
Falar sobre o tempo que passei na gruta é muito aborrecido; foi há
séculos atrás. Mas não, nada me amedrontava ou preocupava. Centenas de
milhares de eremitas ao longo dos séculos fizeram exatamente a mesma
coisa, e noventa e nove porcento deles estavam ótimos. Estamos muito
ocupados com as práticas — não passamos o dia a brincar com os polegares
— e fica-se num estado mental em que se aceita que o que está a
acontecer, está a acontecer. Mesmo que surjam as piores coisas, se
estiveres centrado, ficas bem. Se não, a coisa mais trivial pode
abalar-te. Não tem nada a ver com a experiência ou a circustância: a
atitude é que é importante. Temos de parar de nos agarrarmos ao caminho
condicionado e aprender a abrir-nos ao caminho não-condicionado.
Como se desenvolve essa atitude de abertura?
Essa é que é a questão. Os nossos problemas fundamentais são a
ignorância e o agarrar do ego. Agarramo-nos à nossa identidade, enquanto
uma personalidade, memórias, opiniões, julgamentos, esperanças, medos,
conversa fiada —tudo gira à volta deste eu, eu, eu, eu. E acreditamos
que esse eu é realmente uma entidade sólida e imutável que nos separa de
todas as outras entidades lá fora. Isto cria a ideia de um eu
permanente e imutável no centro do nosso ser, que temos de satisfazer e
proteger. Isto é uma ilusão. “Quem sou eu?” esta é a questão central do
Budismo. Está a ver?
Geralmente o que fazemos é tentar proteger este falso eu, o meu, o mim.
Pensamos que o ego é o nosso melhor amigo. Não é. Não se interessa se
estamos felizes ou infelizes. Na verdade, o ego fica muito feliz por
estar infeliz. E temos de estar conscientes para não usar o caminho
espiritual como outro canal para o ego — um maior, melhor, mais
espiritual eu.
Há práticas que podemos usar contra esta adulação do ego. Na companhia
de pessoas muito doentes que estão a sofrer, podemos visualizar-nos a
tomar a sua dor e sofrimento, sob a forma de uma luz ou fumo escuros,
retirando a doença e karma negativos, e dirigindo-os para a pequena
pérola negra do nosso egocentrismo. E começará a desaparecer, porque,
realmente, a última coisa que o ego quer, são os problemas dos outros.
Se nós próprios sentimos dor e sofrimento, podemos usá-lo. Estamos
condicionados a resistir à dor. Pensamos nela como um bloco sólido que
temos de empurrar, mas não é. É como uma melodia, e por detrás da
cacofonia há um espaço imenso.
O que fazer quando os pensamentos surgem na meditação?
Os pensamentos não são o problema. Os pensamentos são a natureza da mente. O problema é identificarmo-nos com eles.
Como aprender a desidentificarmo-nos deles?
Prática.
E quanto a emoções como a cólera?
O Buda disse que é a cobiça e não a cólera, que nos mantém na roda.
Ninguém nos acorrenta: agarramo-nos com as nossas próprias mãos. Muitas
pessoas vêm ter comigo dizendo que querem erradicar a cólera; é fácil de
ver que a cólera nos faz sofrer. Mas muito raramente as pessoas me
perguntam como se livrarem do desejo.
Precisamos de cultivar contentamento com o que temos. Nós não precisamos
de muito. Quando sabemos isso, a mente aquieta-se. Cultivemos a
generosidade. Tiremos prazer de dar. Aprendamos a viver de uma maneira
mais leve. Desta forma podemos começar a transformar o que é negativo em
positivo. É assim que começamos a crescer.
Pode explicar a diferença entre amor e apego?
O apego é exatamente o oposto do amor. O amor diz: quero que sejas feliz. O apego diz: quero que me faças feliz.

Deteta uma consciência espiritual emergente, no Ocidente?
O que eu vejo é que a sociedade atual se baseia no que o Buda chamou os
três venenos — cobiça e aversão, resultando de um forte sentido de eu. É
o que a nossa sociedade encoraja, acreditando que quando mais
ambiciosos e assertivos somos, mais felizes seremos. Portanto o caminho
para o sofrimento é-nos ensinado como o caminho para a felicidade.
Naturalmente, as pessoas andam muito confusas.
Contudo, acho que as pessoas no Ocidente têm uma vantagem. Ao ter
prosperidade material, já experimentaram tudo o que a nossa sociedade
nos diz que nos trará a felicidade. Se tiverem alguma compreensão, verão
que não é verdade. No máximo, pode trazer prazer, de curta duração. A
felicidade genuina reside noutro lado. Se nunca tiveste essas coisas,
podes imaginar que te podem dar a satisfação que os seus promotores
afirmam. Mas como o Buda disse, o desejo é como água salgada, quando
mais bebes, mais sede tens.
Então por que é que continuamos a beber?
A cruz da matéria é a preguiça. Mesmo quando sabemos o que deveríamos
fazer, escolhemos o que parece o caminho mais fácil. Somos deuses a agir
como macacos. Erguemos-nos na nossa própria luz: não vemos quem
realmente somos.
Mas como sair da nossa luz, dar um passo em direção ao caminho não-condicionado e realizar o nosso potencial ilimitado?
A nossa mente é um tesouro. Mas é muito aborvente, portanto temos de usar de descriminação em relação ao que ouvimos, lemos e vemos. E na vida espiritual, a nossa defesa é a ética. Se soubermos que vivemos eticamente, dando o nosso melhor, a nossa mente torna-se mais tranquila. Atrairemos o mesmo tipo de pessoas. Se a nossa mente está perturbada, atrairemos perturbação para as nossas vidas. Portanto, temos de purificar o nosso estado mental, pois tudo o que está no interior se projeta no exterior. Atraimos pessoas pela nossa prática e pelo nosso karma. Temos de estar preparados, quando alguém de um grau mais elevado está diante de nós, para nos encontrarmos. Fazêmo-lo ao ligarmo-nos à nossa fonte.
Mas se o Buda aqui estivesse, tudo o que faria, era encorajar-nos a praticar. Ninguém pode fazer o trabalho por nós —cabe a nós fazê-lo ou não. Nadar contra a corrente em direção à fonte exige esforço e determinação. Lamento, não há uma reparação rápida. Mas no final é a única coisa que vale a pena. A chave é a prática. Mas não a ponhas no altar: pega na chave, abre a porta, e sai da prisão. Não há obstáculos.
Tradução da responsabilidade do CBP